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A Delação Premiada Como Instituto Auxiliar No Combate Ao Crime Organizado – Doutrina Crítica E Antagônica

30 jul. 2020 - Brasil, Curitiba

Os defensores do instituto da delação premiada exaltam argumentos favoráveis à sua aplicação. O renomado doutrinador Guilherme de Souza Nucci (2014, p. 729) assim exemplifica em sua doutrina sobre aqueles que são adeptos do uso do instituto:

“a) no universo criminoso, não se pode falar em ética ou em valores moralmente elevados, dada a própria natureza da prática de condutas que rompem as normas vigentes, ferindo bens jurídicos protegidos pelo Estado;

b) não há lesão à proporcionalidade na aplicação da pena, pois esta é regida, basicamente, pela culpabilidade (juízo de reprovação social), que é flexível. Réus mais culpáveis devem receber penas mais severas. O delator, ao colaborar com o Estado, demonstra menor culpabilidade, portanto, pode receber sanção menos grave;

c) o crime praticado por traição é grave, justamente porque o objetivo almejado é a lesão a um bem jurídico protegido; a delação seria a traição com bons propósitos, agindo contra o delito e em favor do Estado Democrático de Direito;

d) os fins podem ser justificados pelos meios, quando estes forem legalizados e inseridos, portanto, no universo jurídico;

e) a ineficiência atual da delação premiada condiz com o elevado índice de impunidade reinante no mundo do crime, bem como ocorre em face da falta de agilidade do Estado em dar efetiva proteção ao réu colaborador;

f) o Estado já está barganhando com o autor de infração penal, como se pode constatar pela transação, prevista na Lei 9.099/95. A delação premiada é, apenas, outro nível de transação;

g) o benefício instituído por lei para que um criminoso delate o esquema no qual está inserido, bem como os cúmplices, pode servir de incentivo ao arrependimento sincero, com forte tendência à regeneração interior, um dos fundamentos da própria aplicação da pena;

h) a falsa delação, embora possa existir, deve ser severamente punida;

i) a ética é juízo de valor variável, conforme a época e os bens em conflito, razão pela qual não pode ser empecilho para a delação premiada, cujo fim é combater, em primeiro plano, a criminalidade organizada.”

De outro viés, há os que militam pela diminuição ou até pela extinção do instituto da delação premiada do ordenamento jurídico pátrio, destacando características desfavoráveis, conforme exposição da doutrina de NUCCI (2014, p. 728), posicionamento este do qual perfilha:

“a) oficializa-se, por lei, a traição, forma antiética de comportamento social;

b) pode ferir a proporcionalidade na aplicação da pena, pois o delator recebe pena menor que os delatados, autores de condutas tão graves quanto as dele;

c) a traição, como regra, serve para agravar ou qualificar a prática de crimes, motivo pelo qual não deveria ser útil para reduzir a pena;

d) não se pode trabalhar com a ideia de que os fins justificam os meios, na medida em que estes podem ser imorais ou antiéticos;

e) a existente delação premiada não serviu até o momento para incentivar a criminalidade organizada a quebrar a lei do silêncio, regra a falar mais alto no universo do delito;

f) o Estado não pode aquiescer em barganhar com a criminalidade;

g) há um estímulo a delações falsas e um incremento a vinganças pessoais.”

De mãos dadas com o pensamento favorável à aplicação do instituto da delação premiada, estão as convenções onde o Brasil é signatário, dentre as quais a Convenção de Palermo , Convenção de Mérida, nelas estão previstas desde de o confisco dos produtos das infrações de modo a garantir os direitos de terceiros de boa-fé, até o confisco de bens adquiridos por condutas ilícitas e a devida restituição aos proprietários anteriores.

Nesse vértice, é a argumentação de discussões no âmbito do STF, em especial o julgamento do Habeas Corpus 127.483/PR:

Ademais, a Lei nº 9.615/98, que dispõe sobre o crime de lavagem de dinheiro, igualmente prevê a imposição de ‘medidas assecuratórias sobre bens, direitos ou valores para reparação do dano decorrente da infração penal antecedente’ (art. 4º, § 4º, grifamos). Referida legislação também estabelece preferência ao ressarcimento do lesado, estipulando a perda ‘de todos os bens, direitos e valores relacionados, direta ou indiretamente, à prática dos crimes previstos nesta Lei, inclusive aqueles utilizados para prestar a fiança, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé’ (art. 7º, I,).

“A Convenção de Mérida (Decreto nº 5.687/2006) igualmente determina o confisco de bens adquiridos com valores ilícitos e sua ‘restituição a seus legítimos proprietários anteriores’. A Convenção de Palermo (Decreto nº 5.015/2004) estabelece a adoção de uma série de medidas para permitir o confisco do produto das infrações, ressalvando que ‘não deverão, em circunstância alguma ser interpretadas de modo a afetar os afetar os direitos de terceiros de boa-fé’.

No caso concreto, o acordo de colaboração ‘liberou’, em favor de pessoas próximas ao Colaborador os bens adquiridos com os resultados dos crimes praticados contra a Petrobras, afrontando os direitos preferenciais de reparação do dano ao lesado, impostos pelo Código de Processo Penal, Lei de Lavagem de Dinheiro, Convenção de Mérida e Convenção de Palermo. Diante do exposto, o acordo de colaboração premiada, ao liberar, em favor de pessoas ligadas ao Colaborador, bens adquiridos com os valores provenientes das infrações, estabeleceu benefício não previsto em lei e ofendeu o art. 31 do Decreto nº 5.687/2006 (Convenção de Mérida), que impõe a aplicação das medidas de confisco no maior grau permitido, proibindo qualquer flexibilização das normas vigentes. Da mesma forma, ao liberar bens que, em tese, poderiam ser objeto de reparação do dano civil por parte da Petrobras, o acordo violou a preferência legal do ofendido na recuperação de ativos, prevista no art. 125 do Código de Processo Penal; art. 7º, inciso I, da Lei nº 9.615/98; art. 57 do Decreto nº 5.687/2006 (Convenção de Mérida) e art. 12 do Decreto nº 5.015/2004 (Convenção de Palermo).

Em conclusão, as ilegais cláusulas patrimoniais inseridas no acordo de colaboração premiada, homologadas por decisão judicial, ofendem inúmeras normas jurídicas e desrespeitam o princípio constitucional do devido processo legal.”

Para a Ministra do STJ, Maria Thereza Moura, o instituto deve ter sua aplicação direcionada à casos de crimes graves, pois o “espírito da lei” que idealizou a colaboração premiada pretende chegar até os líderes criminosos por isso não se trata de apenas meras confissões.

Logo, a argumentação seja ela tanto favorável como desfavorável, o instituto da delação premiada possui fundamentos que devem ser sopesados.

No que se refere à sua classificação, a delação premiada pode ser uma colaboração premiada aberta ou colaboração premiada fechada, conforme especial previsão legal nos Artigos 3º e 4º da Lei nº 12.850/2013:

Art. 3º Em qualquer fase da persecução penal, serão permitidos, sem prejuízo de outros já previstos em lei, os seguintes meios de obtenção da prova: I - colaboração premiada; [...] Art. 4º O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados: [...]

Nesse lapso, BADARÓ (2018, p. 301) ressalta que o instituto da delação premiada está intrinsecamente relacionado com a produção de provas e que ocorre um verdadeiro atropelamento processual já que a produção de provas ocorre antes da denúncia, o que não se verifica no trâmite processual convencional:

[...] “Aprofundando um pouco mais a diferença, os meios de prova se produzem no processo, sendo os elementos probatórios formados no ato de sua realização. Por exemplo, é no depoimento que a testemunha narra ao juiz o que sabe. Já nos meios de obtenção de prova colhe-se um elemento probatório que preexiste à realização do meio. Ou seja, os meios de prova referem-se a uma atividade endoprocessual que se desenvolve perante o juiz e as partes, visando à introdução de elementos probatórios no processo, enquanto os meios de obtenção de prova dizem respeito a procedimentos, em geral extraprocessuais, de colheita de elementos a serem valorados posteriormente no processo.”

De outra banda, poder-se-ia questionar ainda que a garantia constitucional do direito ao silêncio, não estaria sendo respeitada na medida em que a “negociação do acusado com o Estado” de forma tão prematura, visando exclusiva e ansiosamente obter benefícios atinentes à sua liberdade, acaba por fomentar a assunção da culpa sem uma sentença transitada em julgado, assim como a imediata delação de seus comparsas.

Sobre este segundo instituto, copiado da Common Law norte-americana, o atual ministro da justiça, Sr. Sérgio Moro, procura salientar:

“Plea bargain: o pacote incluiu a plea bargain, termo em inglês que se refere à confissão de crimes por parte do acusado. Não se trata de delação premiada, na qual o acusado deve apontar os demais coautores do crime. Moro explicou: "Acordo de colaboração (...) foi amplamente utilizado na Lava Jato: é um criminoso que resolve trair os seus pares, colaborar, entregando crimes de terceiros, além do dele mesmo, e por isso recebe os benefícios. E o plea bargain – ele [acusado] confessa, admite e negocia a pena (...). A ideia é diminuir os custos do processo judicial, a velocidade e tramitação do processo para aqueles casos nos quais haja confissão circunstanciada se possa resolver casos sem o julgamento custoso".

Nesse aspecto, faz-se mais que necessária a efetiva avaliação quanto à moralidade e a constitucionalidade do instituto da delação premiada como integrante do arcabouço jurídico pátrio.

Considerados os pontos positivos e negativos identificados através da aplicabilidade do instituto da delação premiada, na hipótese de serem constatadas agressões aos institutos garantistas do cidadão, se faz necessário aos operadores do direito e aos atores envolvidos, a avaliação se sua utilização trará resultado apenas ao Estado ou de forma efetiva, ao infrator e à sociedade que deveria ser a maior interessada na “transação”.

6 REFERÊNCIAS

BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. A colaboração premiada: meio de prova, meio de obtenção de prova ou um novo modelo de justiça penal não epistêmica? In: Colaboração premiada. São Paulo: RT. p. 301. 2018.

_____. Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013. Disponível em: . Acesso em: 07 ago. 2020.

MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. Delação premiada. Revista Del Rey Jurídica. Belo Horizonte: Del Rey, ano 8, n. 16, p.67-70, 1.sem. 2006.

MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Colaboração premiada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018.

NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 8 Ed. Revista, atualizada e ampliada. vol. 2. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

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